segunda-feira, 23 de abril de 2012

SAUDADES .....


Saudades delas... das que já morreram... da alegria, da partilha, da companhia. Dos risos e sorrisos, dos abraços, dos carinhos trocados e do amor repartido.
Saudades de ter Mãe, de ter Avó..... Saudades de ser assim de tantas e tão querida. Saudades de amar, como só se ama quem nos pertence, quem nos sente, quem nos entende.
Saudades dos tempos felizes, em que nada parecia haver que nos afastasse. Mas veio a vida, e consigo a morte. Mas veio a vida, e consigo tantas mentiras.
E assim tudo acabou. Tudo se perdeu.
Não sou de ninguém, não me sinto bem, mas também não há remédio. Dizem que é assim a vida... Que temos de aguentar... que tudo vai passar.
Há coisas que não passam, como estas saudades, e outras que não se esquecem, como aquelas palavras.
Há amores que merecem todas as lágrimas perdidas e sentidas... e outros que não merecem nada...
Nem estas saudades!

terça-feira, 17 de abril de 2012

MAR DOURADO



Se eu fosse pintor, passava a minha vida a pintar o pôr do Sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte mm um ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da Lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta. Tardes violetas, oeste ar tão carregado de salitre que toma a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados ...
Um poente desgrenhado, mm nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do forte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas – e não quer morrer...
Há na areia uns charcos onde se reflecte o universo – o céu, a luz, o poente. Não bolem e a luz demora-se aí até ao anoitecer. E como o poente é oiro fundido sobre o mar inteiramente verde, que a noite vai empolgar não tarda, os charcos, entre a areia húmida e escura, teimam em guardar a luz concentrada e esquecida.
Em todo o dia, o mar não se viu nitidamente. Névoa esbranquiçada, grandes rolos de poeira e sol misturados, água de que se exala um hálito verde envolvido nas ondas. Por fim, o Sol desceu e um nevoeiro imprevisto entranhou poalha de oiro no mar esverdeado, fantasmagoria e sonho nesta frescura extraordinária.
Agora este, teatral, com largas gambiarradas, franjadas a oiro, acabado de pintar pelo cenógrafo para uma apoteose, e outro que não sei descrever, feito com muito pouco: quase desmaiado, um nada de luz no mar efémero, um nada de luz no céu efémero e a montanha roxa ao fundo prestes a desvanecer-se...
Agora é prata, daqui a pouco é oiro, e quando o Sol desaparecer de todo, ainda o horizonte fica por muito tempo iluminado. Oiro desvanecido e pó de água que ascende do mar. Um pouco de névoa e dois jactos projectados no céu – verde e oiro, oiro e verde.
Esta tarde, o Sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas. Some-se, e ressurge por fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra numa grande nuvem espessa com interstícios de fogo e explode, iluminando o espaço e a água cor de chumbo.
Este faz sobressaltar e sonhar. Três horas da tarde. Céu limpo, mar manso, e sobre o mar uma chapada de prata, sobre o verde, mil escamas a cintilar, que brilham, luzem e tornam a reluzir. O Sol desce pouco e pouco, majestoso e sereno, no céu todo doirado e a luz forma uma estrada que liga o areal ao infinito, uma estrada larga, de oiro vivo, que começa a meus pés, na espuma ensanguentada, e chega ao Sol. Ó meu amor, não acredites na vida mesquinha, não duvides: dá-me a tua mão e vamos partir por essa estrada fora direitos ao céu!

Raul Brandão (1867-1930)

domingo, 8 de abril de 2012

CONDITICION OF THE HEART...



Vivia com o coração nas mãos na esperança sempre tímida e inquieta de voltar a vê-la. Um dia, quando julgou avistá-la ao dobrar da esquina do seu prédio, sentiu o ritmo cardíaco disparar numa súbita ansiedade, deu meia volta em repentino sobressalto sem saber o que fazer, tropeçou enredado nos seus próprios nervos e caíu desamparado. Atrapalhado, levantou-se logo à procura dele mas já não o viu. A gorda do terceiro esquerdo que ia a passar naquele instante apanhou-o num ápice e fugiu para dentro de casa. Nunca o devolveu e vive barricada na contemplação desesperada do seu troféu inanimado. Ele deixou de perscrutar o horizonte das ruas em busca da silhueta desejada e não mais tirou os olhos do chão nem as mãos dos bolsos.

(vagamente inspirado num velhinho verso do Prince "love it only seems 2 buy a terminal condition of the heart")