terça-feira, 14 de setembro de 2010

OS MENINOS DE ABRIL !


Meu menino
Já ninguém estranhava. Desde que o filho morrera em Angola, na guerra, a Ti Custódia desatara a falar sozinha. A toda a hora: enquanto varria as folhas secas da figueira e das trepadeiras no quintal. Na estrada velha a caminho da mercearia do Jonico onde ia comprar pão. Na cerca onde plantava umas batatas e outros legumes para o gasto da casa. Por vezes eram conversas intermináveis, feitas de meias frases, de palavras sem nexo que ninguém entendia. As pessoas passavam e cumprimentavam-na: Como vai, Ti Custódia? Mas ela nem respondia. Absorta no falajar, nem dava pelo cumprimento.

Mas era no meio da Ria, na solidão de gaivotas e caranguejos, curvada sobre o viveiro de amêijoas que limpava, que Ti Custódia soltava, num desespero de gestos e palavras gritadas, a dor imensa que lhe cortava a alma: Volta filho, volta que a mãe morre de saudades de ti...
Cá de cima, encostado ao muro do velho Forte da vila, paredes meias com a igreja, debruçado sobre a Ria Formosa, o guarda-fiscal Matias olhava Ti Custódia e não conseguia deixar de suspirar. Ao contrário do que dizem as pessoas e os livros – pensava -, há coisas que o hábito e o tempo não desvanecem. Coisas boas e coisas más.

Para ele, Matias, era bom olhar a beleza azul-esverdeada da Ria Formosa, as águas mansas espraiadas na maré alta, apertadas na maré baixa, o veludo escuro do chão lodoso à vista.
Havia quase vinte anos que viera para aquele posto e todos os dias se encostava ao muro do Forte e olhava a Ria com os mesmos olhos extasiados da primeira vez: os barcos e bateiras a balouçar, os voos circulares ou picados das gaivotas, as marcas verticais dos viveiros, o labor humano dos homens e mulheres que cuidam da amêijoa em crescimento. Depois os olhos perdiam-se na ilha estreita e comprida, no areal fulvo, na linha densa das copas redondas dos arbustos baixos. E, logo a seguir, no mar. No azul do mar a prolongar-se, em dobra na linha do horizonte, no azul suave do céu. E sobre tudo, e sobre todos, a luz intensa e o quente sol de oiro do Algarve, em reverberações de cal branca e cores garridas.

Mas, para Ti Custódia, a beleza da Ria escoara-se no lodaçal no dia em que soube que o seu menino, a combater lá longe, em África, morrera. Para ela, o tempo não iria curar nunca a ferida e o vazio do filho que lhe fora arrancado. Meu menino! Meu menino...
Ainda por cima, o corpo do filho nunca lhe fora entregue, pensava o guarda-fiscal Matias, a fixar o vulto escuro de Ti Custódia, curvada no viveiro. Muitos voltavam em caixões de chumbo, e as famílias sempre podiam, ao menos, aliviar a mágoa com o funeral e o luto. Mas assim...
E agora, cinco anos depois do telegrama oficial com a trágica notícia da morte do filho, o outro filho da Ti Custódia, o mais novo, estava a um passo de ir para a tropa... e para a guerra no Ultramar, como o irmão.
Pobre Ti Custódia, pobres moços com a vida e a juventude truncadas, que raio de guerra esta!...

*

«Mãe, tenho uma coisa para lhe dizer. É uma coisa muito importante. Uma coisa que a mãe não pode nunca repetir. Nunca, a ninguém, nem à nossa Fatinha, pois a minha irmã ainda é muito nova e estouvada e pode descair-se com alguma palavra.»
Estavam as duas na cozinha, mãe e filha. Era de noite e estavam sozinhas, sentadas a costurar à luz mortiça de candeeiros de petróleo.
A mãe levantou os olhos enrugados para a filha: «Diz, Mariana.»
Mariana ajeitou no colo a peça de roupa que cosia, fixou o envelhecido rosto materno e respirou fundo: «Mãe, o nosso Zé António vai mesmo dar o salto.»
Ti Custódia estremeceu. Tremeu-lhe o corpo e fecharam-se-lhe os olhos. Mas perguntou ainda: «Quando?»
«Não sei, mãe, um mês, dois... Nem o meu irmão sabe a data concreta. Será avisado quase de véspera.»
Ti Custódia curvou-se toda na cadeira baixa, a olhar fixamente o chão, como se procurasse, no entrançado do capacho, alguma inspiração ou força obscura. E acrescentou, passado algum tempo: «É melhor assim. Assim não vai combater. Prefiro sabê-lo vivo, mesmo não o podendo ver nem com ele falar.»
O relógio de parede bateu horas, numa sucessão cadenciada de badaladas, e Mariana disse: «É melhor irmos deitar, que isto faz-se tarde e o petróleo do candeeiro está no fim.»
«Vai tu, filha, que a mim não me serve de nada ir para a cama que não durmo. Vai, Mariana.»
Ti Custódia ficou sozinha, na penumbra da cozinha, acabrunhada entre sombras e pensamentos. Via o filho mais velho. Era tão bonito o seu menino, com aqueles olhos pretos que riam com o brilho de pedras preciosas!... Meu menino, estás sempre vivo no meu coração... E agora o mais novo, com a tropa à espreita... Ah, Deus, que vida esta!... Que pouca sorte que lhe calhara como destino, a desta guerra em África!
Mas logo ouviu, clara e nítida dentro dos próprios pensamentos, a voz firme do filho mais novo: Mãe, não diga que a guerra é pouca sorte do destino, que é fatalidade ou vontade de Deus. A guerra é feita pelos homens. Pelos homens, mãe, e está nas mãos e querer dos homens acabar com a guerra.
Ah, onde teria este menino, vinte anos ainda por fazer, ido buscar estas ideias?... E agora ia fugir à tropa e dizer não à guerra, passar o Guadiana num sítio esconso, pela calada da noite, a esconder-se da GNR e da Guardia Civil espanhola, atravessar a Espanha e chegar a França. À liberdade.
França. Pelo menos tinha lá o cunhado, o marido de Mariana, lá emigrado a ver se ganhava alguma coisa para endireitar a vida. Mas esse fora com papeis legais. E naquela casa ficariam três mulheres e as crianças. Ela, viúva. A filha Mariana longe do marido emigrado há anos. A filha mais nova, a escrever cartas e aerogramas para um namorado que também estava na guerra de África. Que vida, que guerra, que destino...
E o eco das palavras do filho a ressoar-lhe de novo na cabeça, a pôr-lhe em dúvida as ideias: Mãe, a guerra é feita pelos homens. Está nas mãos dos homens acabar com a guerra. Assim como fazem a guerra podem fazer a paz e a concórdia.
*

«Ó mãe, já sabe o que sucedeu?»
«Eu não, filha, mas donde vens tu a sorrir dessa maneira tão alvoroçada?»
«Mãe, houve um golpe, uma Revolução, uma coisas dessas em Lisboa. Feita pelos militares. Foi esta madrugada, mas só à bocado é que me contaram. Olhe, tenho estado a ouvir na rádio e já deram na televisão. Lisboa está cheia de gente nas ruas. E de militares no meio das pessoas. Mas tudo pacífico. E o Marcelo Caetano e o Tomás acabaram de ser detidos e já não governam mais em Portugal. E estão a prender os Pides. Mãe, Portugal está a dar uma volta muito grande, isto está tudo a mudar. Venha comigo ali ao café do Largo ver na televisão. Têm estado a mostrar as pessoas na rua. Sabe o que elas gritam? Liberdade, liberdade! E gritam também: Fim da guerra colonial! Ah, minha mãe, já percebeu o que isso significa? Estou tão feliz, tão feliz!...»
*

De pé, no meio da Ria em baixa-mar, Ti Custódia deu por findo o trabalho desse dia no viveiro. Foi então que avistou o filho. Vinha a descer a falésia em direcção à Ria. Era tão parecido, este seu menino, com o irmão que morrera na guerra... Que lhe quereria ele? Não conseguiu deixar de se assustar. Será desta que sempre vai dar o salto? Será a despedida?
«O que tem, mãe, que está branca como a cal da parede?»
«Ai, filho, vens me dizer o tal adeus?»
«Ó mãe, que ideia... Eu já não preciso de fugir. Os tempos mudaram com a Revolução. A guerra de África vai acabar. Talvez eu já nem vá à tropa... Ó mãe, não vai haver mais fuga, nem salto, nem Ultramar. Sossegue o coração, mãe.»
Então Ti Custódia, com um suspiro fundo, ficou a olhar e a sentir a luz em jorros que enchia a manhã, a vida na Ria feita de murmúrios de moluscos e bivalves, correres apressados de caranguejos, voos e grasnidos de gaivotas, o baloiçar suave de barcos e botes, reflexos translúcidos nas águas calmas, a igreja e o Forte lá no alto, as piteiras e espinheiros na encosta, a ilha dourada pelo sol quente, o azul do céu e o azul do mar e o azul da Ria. E sorriu. Pela primeira vez em cinco anos. Era tão bela, de uma beleza transbordante e divina, a Ria Formosa!

A minha primeira pergunta em 1961 , porquê? que via ser de nós portugueses, na minha pacata vila alentejana acharia que não me tocava as tristezas de uma guerra, 14 anos depois voltaria a ansiedade e a mesma pegunta ... o tempo deu-me a resposta !
Um belo texto que recebi ... espero que o autor não se importe de eu o postar.. e que
para quem o ler são memória de um passado recente , Lembrar para não esquecer !

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