sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

PELAS "SEARAS" DA VIDA .........


Tens a fotografia em tuas mãos. A velha fotografia. À esquerda, o brilho fosco da cal da casa da sua natalidade, pássaros de asas abertas, sol imenso a encher o céu. Ao centro, numa espécie de procissão , as árvores , alvenaria batida pelos ventos, vigas de madeira carcomidas pela humidade, janela rasgada diante do furor do tempo , restos de cal e de um esplendor antigo. À direita, a imensa sombra do sonho , estendendo-se terra adentro — voraz — e com ele o princípio da estrada de todos os regressos, de todas as despedidas.
Olha para o pequeno rectângulo de papel rugoso, agora cheio de riscos, amarelado nas pontas. Quem captou aquela imagem já morreu há muitos anos. A casa ainda existe; é só lembranças corroídas e aruínadas. E aquele que tu foste, dentro da casa, também desaparece aos poucos, devorado pela máquina ferrugenta da memória, perdido nesse passado que se vai tornando difuso, frágil e inútil — como uma teia de aranha.
Sabes muito bem o que o tempo, esse assassino discreto, faz às coisas. Monta o cerco. Expande o deserto. Seca por fora e por dentro. Transforma tudo em pó. Nada lhe resiste. Nada. Nem sequer a imagem de uma casa, que alguém, um dia, com paciência e barro , fixou. Nem sequer esta velha fotografia que se desfaz, aos poucos, nas tuas mãos demasiado gastas.
Segues agora, com o olhar, cada uma das linhas da imagem que se desvanece, os gradientes de um preto e branco cada vez mais submerso na irrealidade das coisas extintas. Percorres, às cegas, as fronteiras de um mapa imaginário: o ar escondido, as paredes onde a cal nunca se demorava, o crepúsculo violento atravessando as salas, as tábuas de madeira que rangiam nas noites de ventania, uma voz saindo da escuridão com a forma do teu nome.
Acendes, uma última vez, a memória. Ficas à espera. Mas a memória calou-se. As vozes não regressam, não há ninguém que te chame neste agora que veio depois de tudo o que se apagou, não há variações dentro da brancura espessa do esquecimento. A névoa engoliu tudo. Já não há azul, já não há verde, já não há oiro, já não há prata.
Ainda assim, a fotografia continua entre os teus dedos. Intacta. Mas olhar para ela tornou-se uma violência. O que foi belo, magoa. O silêncio devora-te. O vazio é uma faca apontada ao coração. Sabes que nunca ninguém virá, nunca mais. Por isso aproximas do lume o rectângulo de papel rugoso. E vês arder tudo aquilo: a casa,o sonho as tuas pegadas a tua infância a tua adolescência e a tua realização pessoal ..... ficam as cinzas no borbulhar das chamas........
(foto Constantina Santos)

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